01. Ruína
A sola dos pés sangrava, mas eu mantinha o passo acelerado.
Os pensamentos deviam se concentrar no desconforto físico e no mau cheiro do suor, não na quietude aparente da primeira tarde nublada em muitos dias.
Queria cansar o corpo até amortecer os sentidos para não me preocupar com os destroços imateriais que importavam.
Eu até sorriria em frente à ruína alheia, porque diminuía a minha, e pensava que só civilizações, não indivíduos, cultuavam a própria queda.
Quando a perda é furto sorrateiro, e não declínio secular, há apenas vergonha e incompreensão de si mesmo.
Era mais fácil continuar os passos rápidos do que sentar em um banco e trocar os band-aids dos tornozelos, cortados pelo atrito com o calçado.
Nenhum deslumbramento me tomava. Tinha desprezo pelas ruínas na tarde nublada. Um povo orgulhoso demoliria tudo, em vez de disfarçar a displicência com o falso culto à história.
Em um dia de sol, eu pensaria diferente.
Naquele, eu queria caminhar sem fotografar minha presença.
Só alguém sozinho testemunha a si mesmo e registra um momento para ninguém. Uma queda sem aplausos. Para que guardar o retrato de um dia nublado em que a luz estourou, diluindo as ruínas visíveis e trazendo à lembrança apenas a tarde triste, o suor e os pés feridos pela caminhada.
Agosto. 2018.
02. Construção
Para recomeçar, o perdão.
Casa é onde somos. É contemplar a ruína oculta sob a construção.
Não desmoronei sob minha culpa.
Havia também as farpas e falhas no terreno ao redor.
Não sou um deus, criador sozinho de todas as minhas escolhas.
Março. 2022.
03. Casa
Casa é onde somos. É contemplar a ruína oculta sob a construção.
Tudo bem aparado. Pelos e frestas. Limpos os poros.
E casa é de onde vou desejando voltar, apegado à criação que fiz de mim mesmo.
Para suportar o mundo.
Março. 2022.
Imagens:
- Arquivo Pessoal (01. Ruína)
- Jakub Dziubak (03. Casa)
- Unsplash (02. Construção)