Autorretrato |
Separar alguém de suas palavras é matá-lo, mas também é sobreviver.
Quando participei da minha primeira coletânea impressa, ouvi de uma pessoa próxima que "hoje em dia qualquer uma é escritora".
A frase não me machucou pelo sentido e teria sido inócua vinda de outra pessoa, até porque é uma frase oca, mas me machucou pela intenção.
Depois da frase, continuei escrevendo, mas parei de publicar. Os convites apareciam: "você não quer mandar seu trabalho para tal editor? Não quer mandar seu conto para tal revista? Não quer publicar conosco?" Por anos, eu declinei os convites, um a um, mantendo os textos só nas minhas cadernetas e nas telas brancas do computador.
Ao folhear cadernos de 2016, percebi que partes de Em Brasília, setembro já estavam esboçadas e vinham me perturbando há um tempo maior do que eu lembrava, mas só comecei a esquematizar o livro em 2019. Aí foi aquele processo prolongado de perguntar às personagens quem elas eram, porque eu não queria controlá-las, "veja bem, aqui está uma pessoa que sabe bem o que é o controle, então fiquem à vontade", e fui deixando as moças se apresentarem até o ponto que elas permitiram. Depois disso, tive que aceitar entregar o livro. Capitulei.
O processo do livro tem um sentido todo especial para mim, desde a escolha dos softwares, passando pela minha experiência trabalhando em editora, até eleger a publicação no meu selo, tudo isso tem um significado que me é caro. Isso ninguém me tira. Eu acredito no meu trabalho, sempre acreditei. Revisei livros, fiz leitura crítica, divulguei o trabalho dos outros, divulguei a literatura. No meu trabalho eu sempre acreditei, o problema é que, durante muito tempo, eu não acreditei em mim. Isso mudou.
Estou falando aqui que separar alguém de suas palavras é matá-lo, porque se você tira a fonte de expressão de alguém você tira a verdade dessa pessoa, tira a identidade e o poder dela. E tem gente que vive para fazer isso com os outros. Loucura? Perversidade? Não me cabe mais perder o sono por isso.
Por outro lado, você mesmo às vezes precisa separar os outros das palavras deles, quando elas te fizerem mal. Precisa matar esses outros simbolicamente para que você mesmo sobreviva. Precisa aprender o que é crítica e o que é recalque. Parece fácil, mas nem sempre é.
De tudo pesado ou mesquinho que a gente ouve por aí, bem pouca coisa é crítica. A maior parte é ruído. Por isso, quando eu escrevia minhas resenhas, eu não destruía o trabalho de ninguém, porque o trabalho, meu ou dos outros, é algo que eu respeito.
Mas você precisa aprender a separar as pessoas de suas limitações e de suas maldades para ter paz consigo mesmo. Precisa educar os sentidos para que eles não aceitem tudo, e isso vai te fortalecer ou ao menos te ajudar a manter o foco.
Veio o dia 12 de junho de 2022 e eu fui ao Museu Nacional de Brasília tirar aquela foto com as escritoras da cidade por um motivo que era só meu. Naquele dia, eu me disse "que bom que 'hoje em dia qualquer uma é escritora', porque aí eu posso ser uma". Naquele dia eu me reprogramei, mudando o sentido de uma frase que havia me congelado, infelizmente.
Muito se disse sobre aquele dia. Eu preciso sair em uma foto para ser escritora? Quantos livros eu preciso publicar para ser uma? E por quais editoras? Ruído.
Quando necessário, separe os outros das palavras deles. Por eles. Por você.
Mas não se separe das suas palavras, porque sem elas você morre.
Exemplar da 1ª edição de "Em Brasília, setembro" |